Doi:
Consciência Política e Exercício de
Cidadania em Moçambique: Caso do Conselho Autárquico da Macia, 2009 – 2013
Political Awareness and Exercise
of Citizenship in Mozambique: Case of the Municipal Council of Macia, 2009 -
2013
Paulo Jacob Inguane
Universidade Save, Mozambique
Recibido: 25/07/2019 Aceptado: 12/09/2019
Resumen /
Resumo
O direito ao
voto constitui um fundamento primário da legitimação política dos governantes
nos Estados Modernos. A abstenção deve ser entendida como uma ameaça à
legitimidade dos governos eleitos e ela manifesta o desengajamento dos cidadãos
em relação ao sistema político e aparece como um sintoma de crise dos processos
democráticos; ela deve ser entendida como expressão de crítica do sistema de
governo e como a manifestação do desencontro entre o eleitorado e as suas
expectativas. O estudo pretendeu analisar a relação que se estabelece entre a
consciência cívica do cidadão e o índice de absentismo nos pleitos eleitorais
autárquicos.
Palabras clave / Palavras-Chave:
Abstenção, Cidadão, Democracia, Eleição, Participação.
Abstract
The right to vote is a primary foundation for the
political legitimacy of rulers in Modern States. Abstention must be understood
as a threat to the legitimacy of elected governments and it manifests citizens'
disengagement from the political system and appears as a symptom of crisis in
democratic processes; it must be understood as an expression of criticism of
the government system and as a manifestation of the mismatch between the
electorate and its expectations. The study aimed to analyze
the relationship established between the citizen's civic conscience and the
absenteeism rate in municipal electoral elections.
Keywords:
Abstention, Citizen, Democracy, Election, Participation.
Sumario: Introdução.
1. A Institucionalização do Poder Local em Moçambique. 2. A Consciência Cívica
do Cidadão e o Índice de Absentismo nos Pleitos Eleitorais Autárquicos: Caso da
Vila Municipal da Macia (2009-2013). Conclusão.
Introdução
Moçambique adoptou o processo da descentralização
político-administrativa através da aprovação da Lei 2/97 de 18 de Fevereiro.
Este processo marcou uma viragem no sistema jurídico moçambicano que passou a
contar com dois tipos de poderes: Poder Estatal exercido por um Chefe de Estado
e Poder Local presidido por um órgão municipal. Este processo abriu espaço para
que todo o munícipe residente tome e participe nas decisões políticas que
possam ajudar na consolidação da democracia em Moçambique.
Os Municípios são uma forma reconhecida por Lei que
garantem o controlo social através de representantes de entidades e
organizações da sociedade e permitem que a população não fique como mera
espectadora aguardando a operacionalidade dos compromissos de campanhas pro-postos
nos programas de governação e plataformas eleitorais. No entanto, este processo
é caracterizado por uma abstenção extrema que acaba comprometendo os objectivos
previamente traçado que se resumem na aproximação do cidadão à vida política da
sua área de circunscrição através da eleição dos seus órgãos governativos.
A abstenção que se assiste nas eleições autárquicas
assim como nas eleições gerais constitui não só um problema político mas também
um desafio à pesquisa. É preciso que se identifiquem os factores que contribuem
para que a oferta política do sistema de partido seja tão desajustada das
expectativas dos eleitores a ponto de uma maioria se abstenha a participar no
jogo eleitoral e, por consequência, a desempenhar um papel na escolha do
governo e da orientação política do país.
De acordo com Dias & Matos (2012), “a
participação efectiva da sociedade significa o seu envolvimento em todas as
etapas do processo decisório e não apenas nas fases iniciais de sugestão,
indicação ou pro-posição”. De facto, dentre várias concepções participar implica
o exercício pleno da democracia; o pluralismo das ideias e práticas; a
convivência de grupos de interesses diversos que têm contradições quanto aos
objectivos e aos meios de consegui-los. Portanto, a participação política do
cidadão nos destinos do seu “território”, deve ser vista como algo que pode
aumentar os canais de expressão e influenciar os políticos a agirem com
respeito às necessidades e anseios do povo. Nota-se ainda que, parti-cipação do
cidadão na vida política incrementa a eficiência político-institucional dos
projectos de desenvolvimento.
Abstenção eleitoral está ligada com a não
participação dos eleitores tanto na urna como no acto de recenseamento
eleitoral. Na urna, ela é revestida por não utilização do direito de voto por
parte do cidadão regularmente inscrito nos cadernos eleitorais e a segunda é
aquela em que o cidadão com capacidade activa não se encontre inscrito no recen-seamento
quer por negligência, quer de forma deliberada. Pode se depreender aqui que o
elemento recensear constitui o critério mais importante para que o cidadão
exerce o seu dever cívico.
Numa breve retrospectiva ao processo de
recenseamento eleitoral no país, este, têm sido caracterizado por muitas
deficiências desde a avaria constante das máquinas, a falta do domínio dos seus
utilizadores, a dupli-cação dos registos nos cadernos dos eleitores para além
da distância da fixação das brigadas com a localização dos cidadãos
potencialmente eleitores. Estes e outros factores têm sido um calcanhar de
aqueles para o controlo dos índices de abstenção eleitoral no país.
A partir das evidências acima descritas, o presente
artigo, por um lado, procura apresentar as evidências que podem estar na origem
do aumento da abstenção eleitoral no país em particular nas eleições autárquicas
a partir da importância que se dá na participação e no comprometimento dos
cidadãos às instituições legalmente constituídas. Por outro, o mesmo procura
demonstrar a necessidade de se estancar abstenção por esta perigar a
legitimação dos governantes e consequentemente a falta de colaboração do
cidadão na tomada de decisão.
O método aplicado neste artigo foi o qualitativo na
vertente dialéctica. O mesmo consistiu em analisar a relação que se estabelece
entre a consciência cívica do cidadão e o aumento do índice de absentismo nos
pleitos eleitorais na Vila Municipal da Macia 2009/2013. Por um lado, a
pesquisa socorreu-se na recolha de dados bibliográficos que permitiram o
cruzamento de informação obtida através de obras, dissertações e artigos publicados.
Por outro, tendo em conta a juventude deste processo no país, a pesquisa
socorreu-se a entrevistas semi-estruturadas em 100 munícipes de ambos os sexos,
com capacidade activa, todos residentes na Vila Municipal da Macia. A escolha
dos inquiridos teve como suporte a densidade populacional de cada bairro, ao
que redundou na seguinte repartição dos mesmos: bairro 1, 10 munícipes
inquiridos de ambos os sexos; no bairro 2, com 5 munícipes inquiridos do sexo
masculino e 6 do feminino; bairro 3, inquiridos 4 munícipes do sexo masculino 6
do sexo feminino; localidade sede, a que maior representa a maioria dos
munícipes, com 14 munícipes entrevistados do sexo masculino e 17 do sexo
feminino; bairro 4, com 6 munícipes inquiridos do sexo masculino contra 8 do
sexo feminino; bairro Chinguitine, com 2 munícipes inqueridos do sexo masculino
e 1 do sexo feminino; bairro 5, inquiridos 5 munícipes do sexo masculino e 6 do
sexo masculino; e, bairro 6, com 4 inquiridos do sexo masculino e 5 do sexo
feminino. A inquirição de mais munícipes do sexo feminino não foi tão pouco
aleatória. O processo resultou da aferição dos resultados do Censo Populacional
de 2007 que demonstram que a Vila Municipal de Macia é maioritariamente
habitada por indivíduos do sexo feminino (21.290), que representam cerca de
54,8% da densidade populacional contra 45,2% dos homens (17.587). Esta relação
ditou para que da amostra total fossem inquiridas 55 munícipes do sexo feminino
contra 45 do sexo masculino. A amostra baseou-se em munícipes com idade superior
a 25 anos, visto que com esta faixa etária o cidadão nas eleições autárquicas
de 2008 de Novembro de 2013 encontrava-se pelo menos na idade fixada por Lei
para o gozo dos seu dever cívico, como atesta o artigo 11 da Lei 4/2013 de 22
de Fevereiro.
O objectivo desta amostra foi estabelecer algumas
comparações no que diz respeito ao nível de percepção da importância do
exercício do dever cívico para consolidação da democracia no país e quiçá do
desenvol-vimento local.
1. A Institucionalização do Poder Local em Moçambique
O processo de descentralização
político-administrativa em Moçambique teve o seu embrião a colonização levada a
cabo pelo Governo Colonial Português com a implantação das circunscrições e das
regedorias em vários círculos da outrora Província Ultramarina de Moçambique.
Após a proclamação da Independência Nacional, o país manteve a estrutura
administrativa do regime colonial mudando apenas a sua nomenclatura. Com os
Acordos Gerais de Paz (assinados no dia 4 de Outubro de 1992), e, consequentemente
a passagem do regime mono partidarismo para o multipartidarismo, várias
reformas foram feitas na Administração Estatal como forma de aproximar cada vez
mais o cidadão junto das entidades que gerem a tomada de decisão.
Segundo MAE (1992) as transformações políticas,
económicas e sociais que se verificaram em Moçambique, principalmente a partir
da implementação do PRE e a aceleração do rítmo de degradação das cidades
criaram a consciência da necessidade de se proceder a uma mudança na
organização da Administração Pública Moçambicana.
Magode (1996) procura
elucidar alguns exemplos de como as transformações políticas se realizaram em
alguns países ocidentais, afirmando que:
A modernização dos sistemas
políticos ocidentais, por exemplo, foi preparada por uma lenta erosão das
instituições sociais do regime antigo. […], a cidadania e o liberalismo
político passaram a ser tomados como práticas indissociaveis. Os cidadãos
deveriam ser livres de prosseguir as suas preferencias religiosas, económicas e
políticas, de lutar pela institucionalização do regime de conomia de mercado,
[…], (p.90).
A realidade trazida por Magode (1996) não se
diferencia da vivenciada no nosso país. A descentralização é fruto de uma
roptura, ora, operada após a proclamação da independência nacional (afirmada
através do decreto-lei n˚6/75, de 18 de Janeiro que estabelece
a nova divisão administrativa de Moçambique), ora, operada com a
passagem do regime monopartidário para o multipartidário (afirmada através da
Lei 2/97 que cria o quadro jurídico da descentralização político-administrativa
no país).
A ideia da criação de um modelo de governação que
aproxima o cidadão na tomada de decisão vem sendo debatida por alguns líderes
africanos desde os anos 60. Por exemplo, Nyerere (1962) apud Mbokolo (2011)
defende que “quando uma sociedade está organizada para velar pelo bem-estar dos
seus membros, ninguém, desde que esteja disposto a trabalhar, terá que se
preocupar com o que lhe acontecerá amanha se não juntar riqueza”. O pensamento deste
líder consubstancia com as atribuições da criação das AL em Moçambique,
calcadas no número 1 do artigo 6 da Lei 2/97 de 18 de Fevereiro.
Em 1994, foi aprovada a Lei 3/94, de 13 de Setembro
(Quadro dos Distritos Municipais) que significava uma democratização nos níveis
hie-rárquicos de Administração Estatal. Nesta Lei, previa-se que a referida
democratização ia se operacionalizar em dois sentidos, nomeadamente: (i) em
relação ao processo da eleição de titulares dos órgãos distritais, e, (ii) à
abertura de espaço para a participação e responsabilização dos titulares dos
órgãos distritais pela população, ou seja, à transformação dos Distritos
Administrativos em Municípios, tal como se configura hoje. No entanto, a mesma
Lei foi tida como inconstitucional, pois não estava prevista em nenhum capítulo
da Constituição de 1990 sobre a criação dos órgãos com este tipo de poder.
Em virtude da inconstitucionalidade da Lei 3/94,
foi feita a emenda da Constituição de 1990, através da Lei nº9/96 de 22 de
Novembro, que introduziu os princípios e disposições sobre o Poder Local no
contexto da lei fundamental e efectuaram-se estudos a partir de 1995, que
culminaram com a promulgação do Pacote Legislativo Autárquico em 1997. Esta Lei
tem como um dos grandes objectivos: (i) organizar a participação dos cidadãos
na solução dos problemas próprios da sua comunidade; (ii) promover o
desenvolvimento local; (iii) aprofundamento e a consolidação da democracia no
quadro da unidade do Estado moçambicano.
Em resposta do plasmado na emenda constitucional de
1996, é apro-vado a partir da legislação autárquica, em 1997, a Lei 2/97 de 18
de Fevereiro, que cria o quadro jurídico-legal para a implementação das
Autarquias Locais no país.
Em Moçambique, as Autarquias Locais são
uma forma do Poder Local definidas no nº 1, do Artigo 273 da CRM (2004) e
compreendem os Municípios e as Povoações, de onde, os Municípios
correspondem ao território das cidades e vilas e as Povoações aos territórios
das sedes dos postos administrativos, aos quais o Estado pode conferir o poder
de se autogovernarem, através de órgãos representativos da sua população.
O processo da descentralização político
administrativo que se assiste em Moçambique, através da aprovação da Lei 2/97,
significou a combi-nação dos processos de desconcentração e da
descentralização; constitui o processo de desconcentração na medida em que é o
governo central que transfere algumas das suas competências e atribuições para
as mãos da gestão local, isto é, para os governos localmente eleitos e por sua
vez, a descentralização na medida em que implica a devolução dos poderes de
forma gradual aos órgãos eleitos pelos respectivos povos nas suas zonas de
circunscrição.
O sucesso alcançado nas 1ªs e 2ªs eleições autárquicas (1998 e 2004)
permitiu, não obstante as constantes negociações políticas de que foi alvo, o
lançamento de um importante processo de descentralização democrática em
Moçambique. O Município da Vila da Macia, que constituiu objecto
de estudo desta pesquisa, configurou na 3ª fase da implementação deste processo
em Moçambique. Após vários debates entre os partidos na oposição (encabeçado
pela RENAMO) e Governo (encabeçado pela FRELIMO), foi aprovada a Lei 3/2008, de
2 de Maio, que cria mais 10 (dez) Municípios em algumas circunscrições territoriais,
sendo um em cada província, perfazendo quarenta e três (43), sendo vinte e três
(23) de categoria de cidades e vinte (20) de categoria de vila, onde, 14 são da
região Norte, 16 da região Centro e os restantes 13 na região Sul.
2. A Consciência Cívica do Cidadão e o Índice de
Absentismo nos Pleitos Eleitorais Autárquicos: Caso da Vila Municipal da Macia
(2009-2013)
Quando se fala do regime
democrático, característico das Autarquias Locais, deve-se perceber que,
independentemente da forma do poder que é exercido em cada território, o que
mais conta é que, este, esteja, de facto, directa ou indirectamente nas mãos do
povo; que vigora como a Lei das Leis o princípio de soberania popular (artigo 2
da CRM), de onde a sociedade age por si só sobre si mesma e não existe poder
fora dela e não há ninguém que ouse conceber e sobretudo exprimir a ideia de
buscá-lo de outro lugar senão na mesa de voto, como ilustra Tocqueville apud
Bobbio (1986), “o povo reina sobre o mundo político, como Deus sobre o Universo.
Ele é a causa e o fim de tudo; tudo dela deriva e tudo para ele é reconduzido”.
Os órgãos eleitos através
da organização do partido tornam-se manda-tários que o penalizam retirando-lhes
a confiança toda vez que ele subtrai à disciplina, à qual converte-se assim num
sucedâneo funcional do manda-to imperativo por parte dos eleitores. Hoje, falar
do desenvolvimento da democracia é olhar para a extensão das formas do poder
que até hoje só haviam sido ocupadas nas grandes sociedades políticas, para o
campo da sociedade civil. O desenvolvimento da democracia não deve ser
analisado apenas sobre quem tem o direito de voto, mas sim através da análise
do número das pessoas que têm direito de votar; das diversas instituições nas
quais se exerce o direito de voto, isto é, quem vota e onde vai votar. Nisto, a
democracia deve ser vista ou encarrada como o regime caracterizado pelos fins
ou valores em direcção aos quais um determinado grupo político tende e opera.
Segundo Dahl (2001), no
espesso matagal dos ideais sobre a demo-cracia, às vezes impenetrável, é
possível identificar alguns critérios a que um processo para o Governo de uma
associação teria de corresponder, para satisfazer a exigência de que todos os
membros estejam igualmente capacitados a participar nas decisões da associação
sobre sua política, con-cretamente: a participação
efectiva; a igualdade de voto; o entendimento esclarecido; o controlo do
programa, e, a inclusão dos
adultos.
O progresso dos preceitos democráticos defendidos
por Dahl (2001) caminha passo a passo com o fortalecimento da convicção de que
após a idade das luzes, como observava Kant, o homem saiu da menoridade, e com
maior idade não estava mais sob tutela, isto é, deve decidir livremente sobre a
própria vida individual e colectiva, através do exercício do seu dever de
participar da vida política.
O critério levantado por Dahl (2001) remete a
afirmar que o exercício dos princípios democráticos está relacionado com a
cidadania, isto é, com a pertença de um indivíduo a uma determinada comunidade.
Os seus direitos emergem com a presença de direitos iguais perante a Lei, que
se resumem em: (i) direitos civis – os necessários para a liberdade individual,
pessoal, do pensamento e da fé; (ii) direitos políticos – participar no exer-cício
do direito político como membro de um corpo investido de auto-ridade política
ou como eleitor dos membros desse corpo; (iii) direitos sociais – compreendem a
vasta gama de direitos a um modicum de bem-estar económico e segurança, ao
direito de participar plenamente na herança social e viver a vida de um ser
civilizado segundo padrões prevalecentes na sociedade.
Numa outra vertente, Martin (2011), olha para a
questão da cidadania em três postulados, nomeadamente:
a)
Cidadania como condição da pessoa
que vive em uma sociedade livre, isto é, nas comunidades políticas onde impera
o arbítrio ou a tirania não existem cidadãos. Para que tal condição se
implemente é mister uma ordem política democrática que permita o exercício das
liberdades;
b)
A cidadania deve ser encarrada
como condição voluntária, isto é, não pode ser imposta a nenhuma pessoa. A
qualidade de cidadão se funda no pacto social; um acordo livre de pessoas para
integrar-se e participar num determinado modelo de organização política; e,
c)
A cidadania se desdobra em um
conjunto de direitos e deveres das pessoas que pertencem a um determinado
Estado.
O conceito de cidadania
nasce, historicamente, como oposto de súbito, mas sem a aspiração de incluir
todas as pessoas da sociedade. Hoje, a questão da cidadania se resume em:
garantia de certos direitos, assim como obrigação de cumprir certos deveres
para com uma sociedade espe-cífica; pertencer a uma comunidade política
determinada (normalmente um Estado); e, a oportunidade de contribuir na vida
pública desta comu-nidade através da participação. A cidadania define o modo de
pertencer dos indivíduos na comunidade política. A pertença, o estatuto da
cidadania, qualquer que seja sua natureza, (adquirido pelo nascimento ou por
relação contratual), constitui a condição de direito que reconhece o acesso do
indivíduo na comunidade civil de direitos, obrigações e deveres, igualmente
compartilhados pelos cidadãos.
De acordo com os Acórdão do Conselho Constitucional
(2009), a participação do eleitorado na legitimação e desenvolvimento do seu
Município tende a reduzir. Confrontados os resultados dos cidadãos inscritos
com os que exerceram o seu dever cívico, nota-se uma diferença muito
significativa. No ano de 2009, foram inscritos nos 43 Municípios do país,
2.774.062 eleitores e apenas 1.285.936 que correspondem a 48,6% vota-ram nos
seus representantes. Neste período, a abstenção situou-se em 51,4%, isto é,
1.488.126 eleitores não se fizeram à mesa de voto. Parale-lamente ao período em
análise, nas eleições autárquicas realizadas em 2013, o comportamento do
cidadão na mesa de voto tem sido o mesmo. Os resultados divulgados pela CNE
(2013) indicam que no período em apreço, num total de 53 Municípios, foram
inscritos 3.061.774 eleitores e apenas 1.393.990 que correspondem a 45,1%
exerceram o seu dever cívico. Por sua via, 1.679.668 eleitores optaram em não
se fazer presente à mesa de voto o que representa uma abstenção na ordem 54,9%.
Tomado como base o Município da Vila da Macia os
resultados das eleições autárquicas (2009 -2013), demonstram que no primeiro
ano da sua elevação à categoria de Município (2009), a abstenção situou-se na
ordem de 41.9%. No entanto, na eleição de 2013, que coincide com o segundo
mandato da autarcização, houve um ligeiro aumento dos eleitores inscritos na
ordem de 2.2% e a abstenção situou-se em 34.8% o que representa uma redução de
7.1%. Apesar de a tendência apontar para uma ligeira participação dos eleitores
à mesa de voto, a abstenção eleitoral ainda se situa acima dos 35%. De acordo
com as estatísticas do INE (2007), esta vila tinha uma projecção de cerca de
38.877 habitantes com capacidade activa o que confrontando com os eleitores
inscritos em 2013 demonstra haver muitos munícipes não inscritos na ordem dos
48%.
Os resultados das entrevistas
revelam que 65% dos cidadãos vêm no voto como sinónimo de eleger o Presidente,
Governo e Partido Político ao passo que, 15% não tem noção do que votar pode
significar como atestam as objecções que se seguem:
(i)
Voto representa o direito de cidadania; (ii) Votar, significa
eleger a pessoa que irá ajudar e respeitar; (iii) Votar implica
melhorar a vida do país; é como pegar a enxada e ir a machamba cultivar para os
meus filhos e netos; (iv) […], vou votar quando chega o dia
de voto porque sempre dizem para irmos lá votar mas o que isso de facto quer
dizer não sei; (v) Não tenho nenhum significado sobre votar, e ele só tem ido
votar quando houve dizer e para não ser descriminalizado prefere seguir os
outros e votar”. (vi) Votar
representa a expressão pessoal do dirigente que irá dar seguimento aos anseios
do cidadão; (vii) é cumprir com o plasmado na CRM; (viii) é demonstrar a
cidadania e o compro-metimento com os programas apresentados pelos candidatos à
presidência”, (cp).
Para os efeitos deste artigo, apenas 15% dos entrevistados, notaram não
ter a percepção do significado voto. A pesquisa importava saber se esta
forma de buscar a vontade popular a desaguar na votação é ou não
suficiente. Esta questão teve como base de sustento o nível de percepção
popular do que é o verdadeiro significado do voto, isto é, para uma parte
dos munícipes da urbe (talvez pelo nível de escolaridade) votar é nada mais nada menos que escolher um
candidato, governo ou partido político para presidir o país/município.
Porém, parte dos cidadãos (maioritariamente residentes na periferia) percebe a
questão e olham no votar como sinónimo de olhar
no contexto (social, cultural, político, económico) em que se vive,
observar as necessidades particulares e colectivas, os desafios,
os anseios e expectativas que a mesma colectividade tem e cruzá-los
comparativa e criticamente com o Programa de Governação/Município
que cada candidato apresenta como solução à situação real do país e daí
decidir.
De acordo com Dahl (2001), um dos critérios a ter
em conta para sustentar os preceitos plasmados num regime democrático é
garantir a participação efectiva e esta só é possível quando uma decisão antes
de ser tomada, todos os membros dessa comunidade tem
oportunidades iguais e efectivas para fazer os outros membros conhecerem suas
opiniões sobre qual deve ser a política a seguir. A pesquisa revelou haver
conhecimento por parte dos cidadãos de agentes de educação cívica que, quando
se estiver preste a realização do escrutínio aproximam-se ao eleitorado e os
informa sobre a necessidade de votar. Todavia, esta é maioritariamente feita
pela liderança local (secretários dos bairros e líderes comunitários), onde a
partir de reuniões nas sedes dos bairros, incentivam as populações para irem
votar. Nota-se haver um défice por parte dos agentes de educação cívica na
educação do eleitorado. Constata-se ainda que a entidade responsável pela
Educação Cívica (STAE) faz-se sentir apenas nas principais ruas do Município.
Porém, dos poucos casos em que esta se faz sentir, o trabalho por eles
desenvolvidos não nutre nos cidadãos locais como atesta o seguinte depoimento “não gosto de como o trabalho é desenvolvido
pelas autoridades. Os líderes comunitários só têm-nos chamado para irmos às
reuniões para falar das eleições e quando lá chegamos deparamo-nos com a
presença dos membros dos partidos”.
O artigo 13 da Lei 2/97 prevê que os Órgãos Locais
devem criar e promover um sistema de comunicação que permite a divulgação e
publicitação das suas actividades. A conjugação deste artigo com o pensamento
defendido por Dallar (1994) depreende-se que o sucesso da consolidação de um
Poder Local depende da capacidade que os órgãos eleitos têm de se aproximar
junto dos seus munícipes e junto deles apresentarem e discutir os programas que
pensam em desenvolver.
Os resultados da pesquisa revelaram que a única
entidade que é mais familiar no Município é o Presidente do Município. A figura
de vereadores se é que de facto existem nunca ouviram falar talvez tenha
passado aquando da campanha eleitoral. As declarações que se seguem procuram
elucidar a relação que existe entre o cidadão e os órgãos municipais.
(i) Conheço sim o sr.
Mariquele; (ii) Não há reuniões. O presidente não tem tempo connosco mas nós
queremos falar com ele para melhor explicarmos das coisas erradas. Estamos
cansados com ele, achamos que não esta em condições de continuar a trabalhar;
(iv) Não conheço nenhum órgão do conselho municipal, mas apesar disso, julgo
que o Município fez algo durante o primeiro mandato; (v) O único dirigente que
conheço pela campanha eleitoral é apenas o Presidente do Município; (c.p).
Os depoimentos recolhidos atestam que apesar de
haver tendências em conciliar a questão com as realizações, a figura do
Presidente do Município é a única conhecida. Ficou-se ainda a saber que o
Presidente do Município desde que foi eleito em nenhum momento aproximou ou
teve contacto com eleitorado pelo menos para agradecer sobre a confiança que o
cidadão depositou nele.
A avaliação dos munícipes sobre as actividades
desenvolvidas pela edilidade carrega consigo o problema da interacção e
partilha de ideias sobre as prioridades que os órgãos municipais traçam e os
que o povo espera que venham a ser desenvolvidas, como atestam alguns extractos
que se seguem:
I˚
Só haverá felicidades se todos nós
em casa estivermos felizes, mas, o que posso dizer é que ele pode ter
trabalhado, mas devo dizer que foi muito pouco. A energia que meu filho vê não
é graça a edilidade, só as pessoas não sabem e acham que é do trabalho do
município que temos energia. Neste bairro ele quase não fez nada, fico com
tanta ganância quando vejo o que acontece por exemplo em Nampula. Vejo através
da TV como inacreditáveis e uma relação sã entre o Município e os Munícipes.
Talvés trabalhe lá na cidade aqui não. É por isso, que no conto do distrito de
Acuabe, província de Cabo Delgado mácua e makone diz-se “Inam kamba kwadju,
fadhari usiki vukiri”, tradução nossa “uns não partem contra nós, mas este é
contra nós. O presidente deve procurar formas de se unir a nós. Vandalizar as
nossas riquezas não nos agrada. Os vende-dores de mandioca e batata-doce passam
muito mal, as mercadorias quando não são compradas são despejados mas sempre
são enganados a votar em promessas e programas falsas.
II˚
A implantação deste processo não
vê como sinónimo de mudanças. Veja que aqui não temos água vale apenas recuar
até o período em que a gestão do processo estava nas mãos dos privados. A única
coisa que gostaria de ver mudado é o abastecimento de água porque estamos
cansados de depender dos privados. Cobram muito dinheiro e acredito que se
fosse município isso poderia mudar. Insiste na questão, para lhe agradar podia
falar das estradas reabilitadas com pavês, electrificação de algumas ruas, o
Município hoje já tem casa própria.
Os extractos de alguns munícipes residentes na urbe
divergem na avaliação que fazem sobre as actividades desenvolvidas pelos Órgãos
do Conselho Municipal. Nas zonas suburbanas tais como 2º, 3º, 4º e 1ºs bairros,
nota-se que apesar de ter-se conhecimento da existência do Muni-cípio na vila,
e pelo facto de estes bairros situarem-se aproximadamente a 1km do centro da
cidade, onde, passado um mandato após a imple-mentação deste processo, as
actividades desenvolvidas ainda não se fize-ram sentir. Reconhecem a existência
dos Órgãos do Conselho Municipal e na existência de algumas realizações, na
medida em que, ao deslocarem-se ao centro da vila, vêm em estradas limpas, ruas
a serem pavimentadas, vedação no cemitério local, a existência de uma morgue no
hospital. Os munícipes residentes na localidade
sede, mostram ter conhecimento e percebem as atribuições dos órgãos municipais.
No entanto, existe alguns com dificuldades de diferenciar as actividades da
competência do Município e do Governo Distrital.
Os munícipes residentes na periferia da urbe lançam
duras críticas a inflexibilidade da edilidade em resolver alguns problemas
básicos como é o caso da recolha de lixo, onde são sujeitos a pagar nas
facturas de energia uma taxa que depois não os beneficia. Outro aspecto de
descontentamento é no abastecimento de água. Os cidadãos são obrigados a ficar
mais de três meses sem que o precioso líquido jorre nas suas torneiras e
obrigando-os a pagar valores elevados junto aos fornecedores privados para ter
acesso a água potável.
A implantação do processo da descentralização
político-administra-tiva implica a afirmação de um contrato entre os
governantes e a popu-lação local. Um dos aspectos que o contrato prevê é a
prestação de contas, onde o cidadão irá avaliar as actividades desenvolvidas
pelo Município e propor, caso julgue, o reajustamento de alguns programas. No
entanto, os governantes nem sempre agem assim. Os compromissos assumidos
durante as campanhas eleitorais nem sempre são honrados, acabando decepcionando
aos seus eleitores por parecer não se preocupar de ter mão sobre a realidade,
sobre os desafios e os problemas reais das pessoas.
A abstenção eleitoral é o acto de
negar ou de eximir de fazer algumas opções políticas, isto é, abster-se do
processo político é a que se manifesta em períodos eleitorais ou em qualquer
decisão por voto, onde, o cidadão opta em um voto em branco, nulo ou limitar-se
a não se fazer a mesa de voto. O estudo procurou perceber do cidadão eleitor as
razões que podem estar por detrás do alto indíce de abstenção nas eleições
autárquicas.
O eleitorado da Vila Municipal da
Macia olha como razões do absentismo eleitores as seguintes:
(i) Qualquer
dirigente durante o percursso comete falhas que as vezes, as mesmas, concorrem
para que as pessoas não votam; (ii) Muitas promessas não cumpridas; (iii) A
abstenção não é fruto da acção dos nossos governantes. Nós somos
indisciplinados. A abstenção não é resultado de não se fazer campanhas, nós é
que não reconhecemos os nossos dirigentes; (v) O que concorre para o absentismo
nesta vila, acho dever-se às acções desenvolvidas pelos colaboradores do
Presidente. Veja a questão de confiscar as mercadorias e outros produtos acha
que isso não pode descredibilizar o Município? (vi) Há muito choro dos nossos
filhos com idade para votar por causa das acções dos polícias municipais; (vii) Quando o município foi instalado, as pessoas preferiam
queimar de calor nas longas bichas a espera da sua vez para votar, porém,
quando viu-se que isso em nada ajuda em termos do cumprimento das promessas
feitas, achou-se por bem dizer que não vale apenas a melhor solução é miscuir
de ir votar; (viii) A abstenção de facto existe mas acho que para perceber
isso, meu filho deve fazer uma boa reflexão, ora vejamos: Achas justo que um
partido que sou membro e simpatizante, um grupo minoritário de pessoas indicam
alguém sem o meu consentimento e chegam a mim e dizem este é o escolhido pelo
partido, este é o nosso candidato o que nós devemos fazer é apoiar e levar a
ele ao poder, será que isso pode-lhe agradar? O que te garante que este é de
facto aquele que nós almejávamos para nos dirigir? Não sua óptica quem é o
culpado pela abstenção! Eu? ou os que se intitulam donos do partido? Se essa
política ainda persistir, posso-lhe garantir e jurar que sempre que haver
eleições meu filho sempre virá aqui e nos perguntar os porque de as pessoas não
irem votar e sempre a resposta que irei-lhe dar é a mesma” (c.p).
O estudo permitiu detectar três
razões para o aumento do absentismo: (i) razões institucionais – os dirigentes
municipais bem como os seus agentes (funcionários) são apontados como o
principal factor do absen-tismo eleitoral. Por um lado, durante as campanhas
eleitorais os candidatos à presidência do Conselho Municipal assim como à
Assembleia Municipal quando almejam alcançar e exercer o poder político fazem
muitas promessas e essas não são cumpridas na sua totalidade. Nisso, o eleitor
fica na expectativa de ver as promessas concretizadas e quando essas não são
satisfeitas na eleição seguinte o mesmo não se dirige a mesa de voto. Por
outro, a actuação dos agentes camarárias (Polícia Municipal) na tentativa de
manter uma ordem e sensibilizar os munícipes a aban-donar actividades informais
tem constituído um factor destabilizador do eleitorado; (ii) razões políticas –
neste aspecto sente-se haver uma consciência do que o voto consiste. O cidadão
apesar de ser membro de um partido político nem sempre concorda com a forma
como os dirigentes “superiores” dos partidos indicam os candidatos à eleição,
nisto, não querendo “estragar” o seu voto e não havendo um outro partido de
eleição abster-se é a única solução encontrada; (iii) psicológicas – aquando da
implantação deste processo, muitos ficaram na expectativa de ver e perceber o
que o Poder local significa. Quando se falou de aproximar o poder junto do
cidadão, este não percebiam de facto como isto iria funcionar.
Conclusão
A implementação do processo da descentralização
político-administrativa tem como elemento principal a consolidação dos
preceitos democráticos. As Autarquias Locais são um espaço de manifestação dos
processos democráticos a partir do momento em que permitem com que o cidadão
formule as suas preferências; são um espaço que possibilita que os cidadãos
tenham o mesmo peso na conduta do Governo, isto é, são um espaço que serve para
garantir que não haja discriminação consoante as origens das suas preferências;
para que possam garantir a prossecução das preferências dos seus cidadãos são
necessários que criem condições para a construção da liberdade de expressão; do
direito ao voto; do direito de competir pelo apoio e pelos votos;
proporcionarem que haja elegibilidade dos cargos políticos; eleições livres e
correctas, etc. A manifestação da democracia nas Autarquias Locais também deve
ser garantida através da realização frequente dos processos eleitorais. As
eleições funcionam como elemento da responsabilização vinculando os principais
actores do Governo. Hoje, as democracias não se circunscrevem apenas pelo
direito ao voto, mas, também através do reconhecimento de uma série de direitos
civis, políticos e sociais. O exercício da democracia nas Autarquias Locais
deve implicar o respeito de alguns limites, nomeadamente: (i) legitimação que
se encontra ligado ao direito de exprimir as suas ideias e organizar-se; (ii)
de incorporação – ligado a capacidade de influenciar as escolhas dos
representantes; (iii) da representação – ligado ao ingresso ao parlamento e,
(iv) do poder executivo que se relaciona com a capacidade do controlo pelo
governo.
A luta pela democracia é uma estrada. Muitas
realizações deverão ser levadas a cabo com vista a consolidação do processo da
descentralização político em curso no país. Os mecanismos de educação cívica do
eleitorado devem ser melhorados e o processo em si deve ser contínuo e
permanente. A informação e as realizações dos órgãos que gerem os processos
eleitorais deve ser difundida com precisão e de uma forma transparente para
permitir com que o cidadão esteja devidamente actualizado e saiba intervir
conscientemente em todo o processo democrático o qual vai para além de
depositar na urna o seu voto, isto é, para além de limitar-se a votar os
governantes deve estar capacitado na fiscalização das suas acções, tomar
decisão sobre os programas e planos de governação, participar em fóruns e
debates sobre a sua área de jurisdição e aprovar ou reprovar as actvidades
desenvolvidas pelos órgãos municipais.
O estudo permitiu notar que, de facto a abstenção
nas eleições municipais é uma realidade. No entanto, apesar de o Município em
estudo tender a uma redução da abstenção na ordem de 7.1% comparativamente à
eleição de 2009, confrontando com as previsões do Censo Populacional (2007),
neste Município, estimava-se que até ao período da realização do segundo
escrutínio (2013) a população com capacidade activa situaria na ordem de 38.877
habitantes, entretanto, apenas 18.648 cidadãos foram inscritos, o que equivale
dizer que 48% dos potenciais eleitores não preencheram o principal requisito
(recenseamento) para exercer o seu dever cívico. Dentre as várias razões
apontadas para o absentismo nas eleições municipais, avança-se o facto de os
governantes imbuídos de poder de autoridade, durante a vigência dos mandatos
não honrarem com os manifestos eleitorais. Por outro, alguns simpatizantes dos
partidos políticos não se mostram favorável ao método usado para a “nomeação”
dos candidatos às eleições municipais.
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Paulo Jacob
Inguane
Universidade Save. Extensão de Maxixe
Faculdade de Letras e Ciências Sociais. Curso de Direito
Av. A. Boavida, s. n.
CP 12, Maxixe (Mozambique)
plnunes9@gmail.com
https://orcid.org/0000-0001-9234-3470